Chegou a hora do meu maior desafio desde a chegada no Japão: encontrar uma casa nova. Desde que cheguei, morava num dormitório de estudantes internacionais. Morar no dormitório tem suas vantagens, principalmente para quem recém chegou no país e sabe pouco sobre os procedimentos da vida aqui, mas com o tempo cansa, desanima. Por mais que meu dormitório não seja ruim (já ouvi histórias de dormitórios bem piores em outras cidades do Japão), considero ele o pior dos que conheci em Tokyo, sendo as únicas vantagens o preço relativamente baixo (35 mil ienes - 310 dólares - por mês) e a possibilidade de se ficar nele por até dois anos. Mas as desvantagens também eram tantas que não fiz questão nenhuma de morar nele por todo esse tempo, apenas até economizar o suficiente para me mudar para um lugar mais agradável, já que se mudar em Tokyo custa bastante dinheiro.
Primeiro quanto às minhas reclamações do dormitório, já que com isso fica mais fácil entender o que quero dizer com lugar melhor. Meu quarto não é pequeno. Mas nele faltam duas coisas essenciais para mim: cozinha e chuveiro. O chuveiro nem é tão importante: o ruim é sempre ter que preparar minha cestinha, roupas limpas, todo o esquema a cada vez que vou tomar banho no chuveiro compartilhado. E como moro no primeiro andar, onde circulam várias pessoas, não me sinto à vontade pra ir ao banheiro só enrolado na toalha. No inverno ainda tem o agravante do frio. Para evitar a umidade, as janelas do banheiro seguidamente ficam abertas. E um problema que era mais freqüente mas parece ter sido resolvido era quando queria tomar banho e estavam fazendo a limpeza. Acho que mudaram o horário. Pelo menos um ponto positivo: apesar de não ser absurdamente limpo, nosso banheiro era um dos mais limpos do dormitório, pelo que comparei quando tive que tomar banho nos das outras alas em dias de manutenção. Além disso, a água era bastante quente e com pressão.
A cozinha, essa sim, é o que mais me deixava desanimado. Cozinha para mim é importante porque gosto de preparar minhas comidas, o que é mais barato e agrada mais o meu gosto não japonês. E a nossa cozinha não era suja. Era imunda. Uma coisa que não consigo entender é como podia nossa cozinha ser mais suja que as dos albergues onde eu já estive. Muita gente diz que a sujeira é por causa dos chineses, o que é uma injustiça: nossa cozinha era tão suja que nem os chineses se animavam a deixar suas louças e seus ingredientes nela! Os moradores mais críticos eram, na verdade, os do Paquistão e Bangladesh.
Eu sei que tem coisas que são culturais, e essas eu tento respeitar. Me esforço, até. Acho estranho o fato de comerem com a mão, mas tudo bem, isso é um hábito diferente para mim como utilizar talheres o é para eles. Mas existem noções básicas de higiene, que, no século XXI, deveriam ser universais. Por exemplo, após as refeições, em vez de lavar pratos, eles apenas passam uma água e os guardam nos armários coletivos da cozinha (que só eles utilizam). E, o que foi a gota d’água para mim, foi ver a mesma criatura (a quem eu “carinhosamente” chamo de “guri-bicho”) chegar na cozinha um dia de manhã, abrir um dos armários e tirar uma panela destampada do seu tradicional “cozido” de legumes, que estava ali pelo menos desde o dia anterior, sem refrigeração alguma, dentro do armário. Também, um dos ralos estava constantemente entupido (o que não impedia que as pessoas continuassem usando-o “normalmente”) e o chão era um adesivo com mais aderência que um Post-it®. Resolvi dar um basta e encontrar de vez um novo lugar para me mudar.
Podem me chamar de fresco. Sou exigente, isso sim, e como introspectivo que sou preciso de um lugar meu para “recarregar minhas baterias”. Especialmente considerando que moro num país onde tudo é estranho: a língua, as pessoas, comidas, sons, músicas. Preciso de um canto onde eu possa fazer a comida que eu gosto, ouvir a música que me agrada, me sentir à vontade. Na verdade, encontrar um lugar para morar em Tokyo não é difícil, se a pessoa não é tão chata como sou. Mas encontrar um lugar que se possa chamar de “casa”, isto sim, é um dos maiores desafios da vida no Japão.
Alugar um apartamento em Tokyo, além de caro, é mais difícil para estrangeiros. É caro não só pelo aluguel mensal, mas também pelas taxas iniciais que devem ser pagas. Além do aluguel do primeiro mês, deve-se pagar o equivalente a um ou dois meses de aluguel de depósito (chamado de “key money”) que serão usados para manutenção ao se sair do apartamento (sendo o que sobra devolvido), além de uma outra taxa mais inexplicável equivalente a um ou dois aluguéis chamada de “gift money”, que é um “presente” dado ao proprietário pela sua gentileza em alugar o apartamento. Esse dinheiro é “morto” e não volta. Seu sentido é questionado por muita gente, mas é uma tradição japonesa que não dá sinais de desaparecer, pelo menos nas áreas onde habitação é mais crítica como Tokyo. Mais a taxa da imobiliária que corresponde a um mês de aluguel. Além disso, é necessário pagar um seguro sobre o imóvel e, em muitos casos, um seguro fiador. Somando todas as taxas, chega-se facilmente a quantias de 300-500 mil ienes (2700-4600 dólares).
O valor do aluguel, que indexa essas taxas, é bastante alto. Um apartamento de 20 m² custa pelo menos 100 mil ienes (900 dólares) mensais no centro de Tokyo, e o preço vai diminuindo quanto mais longe o imóvel fica do centro. Além disso, existem vários outros fatores que influenciam o preço do apartamento: idade, orientação, andar, distância à estação de trem, tipo de banheiro e cozinha, itens incluídos (como ar condicionado) etc. Finalmente, ainda há o agravante de se ter que lidar com tudo isso numa língua complicada (japonês), e aceitar o fato de que a grande maioria dos proprietários (>70%) simplesmente não aluga para estrangeiros.
Procurar um apartamento no Japão consiste em se passar em frente de uma das inúmeras imobiliárias (em geral próximas às estações de trem), ver afixadas nas vitrines diversas fichas de apartamentos com a planta e as informações gerais (valores do aluguel, taxas, localização etc.), entrar, preencher uma ficha dizendo quais suas necessidades e aguardar o agente procurar fichas que atendam os requisitos. Depois, normalmente, visitar os apartamentos das fichas escolhidas. Mas se tratando de estrangeiros, existe um passo intermediário, onde o agente telefona para os proprietários para consultar se ele está disposto a alugar para estrangeiros. Pontos que contam positivamente é se falar (pelo menos um pouco de) japonês, e estudar em uma universidade conceituada. O que conta negativamente é, infelizmente, ser brasileiro. E de uma pilha inicial de uns 15 apartamentos interessantes, após a consulta em geral apenas uns 3 ou 4 estão realmente disponíveis para estrangeiros.
O preconceito com estrangeiros existe no Japão e não é tanto uma questão do japonês não gostar de estrangeiros, mas sim de não estar preparado para lidar com o diferente. Japonês gosta de previsibilidade. Qualquer japonês tem uma idéia geral de como os outros japoneses irão se comportar, mas isso não acontece em se tratando de estrangeiros. Por exemplo, como lidar com um estrangeiro como o “guri-bicho” que vive no meu dormitório? Será que ele conseguirá lidar com o complicado processo de separação de lixo como todos os japoneses se dispõem a fazer? E como fazer quando for pra reclamar de alguma coisa? E não adianta eu ser um “cara certinho”, pois acabo caindo na mesma classificação geral de “nós, os japoneses, e o resto”. Esse é o lado ruim de qualquer preconceito.
Apesar disso, pelos últimos 3 meses estive procurando o apartamento “ideal” para morar. Como tinha até março para sair do dormitório, queria procurar com calma e achar algo que realmente me agradasse. Quanto ao valor, estava disposto a pagar no máximo 65 mil ienes (600 dólares) por mês, e isso se fosse um apartamento muito bom. Logo, apartamentos centrais estavam excluídos. O apartamento não precisava ser novo, mas precisava ter uma aparência boa/nova. Inicialmente preferia que o apartamento fosse um washitsu (和室), ou seja, um quarto com tatami em estilo oriental, o que acho mais prático e confortável, mas logo vi que quartos de solteiro desse tipo não são mais preferência dos japoneses e apenas apartamentos antigos (que não foram reformados) ainda são desse tipo. Assim, desisti desse requisito. Como meu dormitório era bastante longe da estação (20 minutos a pé), procurava apartamentos mais próximos (no máximo 10 minutos). Lugares assim, na mesma linha de trem que utilizava anteriormente, eram difíceis de encontrar, então comecei a procurar em outra linha que também passa próximo ao meu campus. Essa linha, apesar de tomar um pouco mais de tempo e exigir uma troca de trem, é bem mais vazia e barata. Fui com alguns amigos e com a Fernanda, que são mais fluentes em japonês, em algumas imobiliárias procurando apartamentos assim. Nos ofereceram muita coisa ruim. Com o tempo, fui ganhando mais vocabulário e já entendia bastante do que nos diziam, mas ainda tinha a dificuldade de articular minhas respostas.
No início de dezembro encontramos um apartamento que parecia perfeito. Ele havia sido reformado há 3 anos, tinha orientação sul, ficava a apenas 7 minutos de uma estação onde pára o trem expresso (que não pára em todas as estações), ficava no segundo andar e o aluguel era de apenas 58 mil (530 dólares). Fomos visitar o apartamento, e logo chegando no prédio a impressão foi boa: era o primeiro que não tinha a aparência velha e suja de todos vistos anteriormente. Entrando no apartamento, então, o golpe de misericórdia: o chão iluminado pelo sol que entrava pela ampla janela, com vista para uma horta comunitária. Dava para ver à distância! Isto porque, considerando a distância, o apartamento era um pouco mais afastado do centro de Tokyo que o meu dormitório, no subúrbio, mas considerando os transportes ainda assim mais “perto”, a cerca de 20 minutos de trem do laboratório. Completamente diferente de todos os outros que até então havia visto, perfeito!
Voltando do apartamento, dissemos à imobiliária que eu tinha gostado, mas que as taxas iniciais ainda estavam um pouco altas, tentando algum tipo de barganha. Mesmo não sendo possível, disse que estava interessado e disposto a assinar o contrato, e aí apareceu o segundo problema: o fiador.
O centro de estudantes internacionais da minha universidade tem um programa de fiador, onde pagando-se um seguro, a universidade entra como fiador na assinatura do contrato. Havia explicado à imobiliária desse serviço, mas o proprietário não aceitou este esquema por se tratar de um fiador pessoa jurídica. Foi um balde de água fria: já estava me vendo morando naquele apartamento bacana, já estava até aceitando as incomodações do dormitório por saber que aquilo estava com os dias contados. Na verdade, nem foi tanta surpresa, pois alguns meses antes já tinha me interessado por um outro apartamento que também não aceitou a universidade como fiador. Paciência. De volta a estaca zero, explicamos a situação à imobiliária que ficou de procurar outro apartamento. Uns dias depois fomos ver uma outra opção, mas ele não chegava nem perto do anterior.
Nesse tempo, fiquei pensando na questão do fiador, e se não seria possível que meu orientador aceitasse sê-lo. No Japão, também, ser fiador é uma questão complicada e muitas vezes as pessoas não gostam de assumir o compromisso, sendo os fiadores geralmente os pais ou parentes próximos do inquilino. Mas como estrangeiro que conhece poucos japoneses eu não tinha essa opção. Depois de muito pensar na questão, e confirmar que o apartamento ainda estava vago, resolvi começar a “mexer os pauzinhos” para resolver a questão do fiador, e considero que o fiz de uma maneira bastante japonesa.
A forma ocidental de abordar o problema seria conversar com o orientador e apresentar o problema, e pedir a sua ajuda. Mas lembrei de um texto que li sobre relações de negócios entre ocidentais e japoneses que comentava como os japoneses funcionam de forma diferente. Segundo o texto, enquanto os ocidentais fazem um encontro para discutir todos os aspectos e resolver as questões, os japoneses esperam que ambos os lados já tenham “feito a lição de casa” e estudado o problema de antemão, e o encontro é apenas um momento de formalização de uma decisão já bem pensada. Considerando isso, levei meu problema pela hierarquia do laboratório, começando por meu colega de doutorado. Expliquei a ele o meu problema e perguntei se seria apropriado pedir a ajuda do sensei (orientador). Ele disse que normalmente não seria comum, mas em se tratando de um estudante estrangeiro talvez fosse OK, e fomos perguntar para um outro pesquisador do laboratório (mais sênior), que disse a mesma coisa. Os dois concordaram que eu poderia pedir, sim. Em seguida, contatei a secretária do sensei, pessoa mais próxima dele no laboratório, e quem tinha sido a responsável pela minha alocação no dormitório. Expliquei a situação, dizendo que precisava de um fiador, mas que não sabia se deveria pedir ao sensei e que não queria colocá-lo na situação incômoda de ter que negar meu pedido. Ela respondeu dizendo que fiz muito bem em escrever a ela, e que conversaria diretamente com o sensei sobre o meu problema e me daria uma resposta. Alguns dias depois, me informou que o sensei conversaria diretamente comigo, o que fizemos, e ele foi muito atenciosos e sem eu ter que falar nada, aceitou ser meu fiador. Eu estava bastante nervoso mas ele parecia muito tranqüilo, apenas perguntou alguns dados do imóvel e terminou me dizendo “It’s OK, I trust you”.
Fiquei muito feliz. Contatamos a imobiliária para passar a notícia. Fechar o contrato foi um pouco difícil pois o sensei estava viajando em dezembro e logo chegaria o feriadão do ano novo, mas tudo deu certo e fim de semana passado me mudei para meu novo lar. :) Ainda estou lutando com algumas burocracias da mudança, como registro na empresa de água e luz, mudanças de endereço, mas minha casa já tem cara de casa, e minha vida já está muito mais agradável do que estava no dormitório.
Aos interessados em meu novo endereço, é só pedir que eu mando. Alias, até nisso o apartamento é perfeito: os ideogramas do endereço são bem fáceis de escrever!