quinta-feira, outubro 16, 2008

A escrita japonesa

Uma das coisas que mais apavora os ocidentais que vem pra Ásia é a questão da escrita: “Mas e se eu não conseguir entender as placas?!”, “Por que eles não usam letras como todo mundo “civilizado”?!”. Hoje vou escrever um pouco sobre como é a escrita em japonês, como ela se relaciona com o chinês, e ainda alguns comentários, coisas que não são explicitamente ensinadas nas aulas de japonês (pelo menos não nos níveis básicos) mas observei durante meus mais de dois anos aqui. Notem que eu não sei japonês o suficiente pra garantir que o que escrevo aqui está certo, e peço aos amigos que sabem mais que me corrijam nos comentários. Ah, e importante! Para ler esse post é necessário ter instaladas as fontes asiáticas. No Windows elas são uma opção de instalação, no Mac elas vem instaladas por padrão.

A primeira coisa que deve ser levada em consideração é que o japonês é escrito em 3 alfabetos distintos (4 considerando o uso de caracteres ocidentais, que vou ignorar aqui):

  • Kanji (漢字) são os ideogramas de origem chinesa, que podem ter várias formas diferentes de leituras e representam (de forma geral, mas nem sempre) idéias. Os ideogramas japoneses não são exatamente os mesmos usados na China, mas quase todos tem origem chinesa. Alguns ideogramas japoneses são iguais aos ideogramas tradicionais chineses, outros são iguais aos ideogramas simplificados, e alguns (a minoria) são tipicamente japoneses.
  • Hiragana (ひらがな), é um alfabeto fonético (cada símbolo tem apenas uma leitura, que não expressa significado) e é utilizado principalmente para partículas, terminações e flexões verbais. Visualmente é fácil indentificá-los pela sua forma simples (se comparado aos kanji) e linhas curvas.
  • Katakana (カタカナ) é outro alfabeto fonético, usado para palavras estrangeiras e onomatopéias (como o som de animais, etc). Também é composto de caracteres simples, mas tem traços mais grosseiros. Katakana também é usado como recurso tipográfico para dar ênfase, como o uso de negrito em textos ocidentais.

Um exemplo de parágrafo em japonês pode ser visto abaixo. Para quem sabe japonês, é óbvio identificar cada alfabeto, mas aqui uso cores diferentes pra auxiliar na identificação de cada um (kanji em preto, hiragana em azul e katakana em verde):

ホンダ16日、ミニバンオデッセイ全面改良、17日発売すると発表したエンジン改良によって馬力めながら燃費性能向上したオデッセイはこれが4代目。30―40代中心国内月4000台販売目指

O texto é sobre o lançamento de uma nova minivan (ミニバン) chamada Odyssey (オデッセイ). Não consigo ler tudo, pois tem vários kanjis que não sei a leitura. Mas uma coisa legal dos ideogramas é que mesmo sem saber a leitura dá pra saber o significado. Por exemplo, a palavra 馬力 é formada pelos ideogramas de “cavalo” (馬) e “força” (力), logo, “cavalos de força”.

Quem for mais atento vai notar que não tem espaço entre as palavras. A quebra não é explícita, ela acontece quando se muda de alfabeto (por exemplo, com uma partícula), mas nem sempre (quando é apenas uma flexão verbal), ou quando os ideogramas combinados representam mais de uma palavra distinta. Pros japoneses isso não é uma questão tão importante, pois eles não estão acostumados com a idéia de palavras separadas. Mas para computadores tentando indexar textos por palavras, isso é uma questão a ser considerada.

Muita gente se assusta com a quantidade de kanjis: crianças em idade escolar devem saber 1006 ideogramas básicos antes da sexta série, e cerca de 2000 são necessários pra se ler um jornal. Mas o número total para uma pessoa culta pode chegar a 10 mil. O que as pessoas em geral não sabem é que esses milhares de ideogramas não são independentes, sendo a maioria combinações de outros kanjis e radicais. Por exemplo:

O ideograma com o sentido de “mulher” é 女. E o ideograma com sentido de “criança” é 子. Já o ideograma usado para “gostar” é 好. Faz sentido. Ou ainda, o kanji para “estudo” é 学, que também inclui o de “criança” (imagine uma fumacinha saindo da cabeça da criança de tanto estudar).

Outro exemplo: o ideograma para “árvore” é 木. O caractere de “bosque” é 林 e o de “floresta”, 森.

Partindo dos kanjis individuais se formam as palavras. “Universidade” é 大学, os ideogramas de “grande” e “estudo”. Logo, mesmo sem se saber a leitura dá pra adivinhar o significado, considerando que 小学, “pequeno estudo”, é escola básica e 中学, “médio estudo”, é escola secundária. Um dia, logo após sair de uma aula onde aprendi sobre o kanji 量 (quantidade), vi no trem um guri lendo um livro escrito 量子 na capa. Hmm, sabia que 分子, o kanji de “parte” combinado com o de “criança”, significava “molécula”. Supus que o livro fosse sobre Física Quântica. Procurei no dicionário, e era isso mesmo! É assim que a gente vai aprendendo.

Até agora evitei falar nas leituras, porque essa é uma das partes mais chatas de aprender os ideogramas. O fato é que quando os kanjis foram trazidos da China, o Japão já tinha sua língua própria que não tinha praticamente nada a ver com o chinês, e por isso os kanjis não eram por si só apropriados pra se escrever qualquer coisa em japonês. Inicialmente, o que se fazia era escrever tudo em chinês mesmo. Os únicos “letrados” eram pessoas que já sabiam chinês, e faziam a tradução “em tempo real” ao ler e escrever. Era como se eu escutasse, em português, alguém dizer “Olá, qual é seu nome?” e escrevesse no papel “Hello, what’s your name?” e quando me pedissem para ler o que estava escrito eu dissesse “Olá, qual é seu nome?”. Com a diferença que o chinês e o japonês são línguas muito mais diferentes que o inglês do português.

Para adaptar o kanji ao japonês, o que se fez primeiro foi associar os sentidos às palavras já existentes em japonês. Por exemplo, a palavra “pedra” é “ishi” em japonês. Em chinês, havia um ideograma para pedra, que virou o ideograma para pedra também em japonês: 石. À palavra “óleo”, “abura” em japonês, foi atribuído o caractere chinês 油 de mesmo sentido. Ao ver os caracteres isolados, os japoneses irão lê-los como “ishi” e “abura”. Mas quando os ideogramas são combinados, geralmente são usadas leituras mais parecidas com a do chinês original. A palavra 石油 é lida “sekiyu”, e significa “petróleo”, como na palavra de origem latina.

O interessante é que se pensarmos o papel do chinês na língua japonesa, ele é parecido com o do grego na nossa língua. Se vemos uma palavra como “democracia”, sabemos que é o “governo” (kratos) pelo “povo” (demos). Sabemos que muitas das palavras com “demo” se referem ao “povo” (“demográfico” etc), mesmo que “demo” sozinho nunca usemos com esse sentido. “Petróleo”, em japonês vem do chinês assim como “democracia” para nós, vem do grego.

Em alguns casos, idéias diferentes mas relacionadas foram associadas ao mesmo ideograma. Por exemplo, 月 é o ideograma para lua (tsuki) e também para mês (getsu). A palavra segunda-feira é 月曜日 (getsu-youbi), similar ao inglês Mo(o)nday. E domingo é 日曜日 (nichi-youbi), que como no inglês é o dia do Sol (Sunday), mas aqui o primeiro ideograma é lido nichi e o último bi (variação de hi). O mesmo ideograma de “Sol”, lido como ni, é usado na palavra Nihon (日本), o nome do país que literalmente significa a “origem do Sol”.

Mas de volta à leitura. Os intelectuais que sabiam chinês escreviam em ideogramas. As mulheres, que não tinham acesso à mesma educação, começaram a simplificar alguns ideogramas e usar esse alfabeto simplificado foneticamente, o que resultou no hiragana. Dizem que as curvas do hiragana são reflexo dessa origem feminina, uma forma mais suave de escrita (literalmente, hiragana significa “alfabeto suave”).1

Com a reforma da escrita japonesa e a aproximação da escrita à língua falada (ao invés de simplesmente escrever tudo em chinês) o hiragana ganhou importância representando as sutilezas da língua que o kanji simplesmente não conseguia representar, como flexões verbais. Por exemplo, o verbo “entender”, é wakaru no presente, e wakatta no passado. São escritos em japonês como 分かる e 分かった, onde o primeiro caractere é o ideograma de “entender” e o restante é a flexão karu ou katta em hiragana. Agora, porque o ideograma de “entender” é o mesmo de “parte”, eu não entendo. :)

Não satisfeitos com dois alfabetos, os japoneses resolveram simplificar ainda mais o hiragana criando o katakana. Outra forma fonética de escrita, é um alfabeto onde os caracteres são bastante parecidos com os do hiragana, mas tem os traços mais grosseiros. Por exemplo, compare a expressão kana em hiragana e katakana: かな e カナ (ou ainda, em kanji: 仮名). Os caracteres com o som de ka (か em hiragana, カ em katakana) descendem do ideograma 加, enquanto os caracteres com o som de na (な em hiragana, ナ em katakana) descendem do ideograma 奈.

Por fim, quero fazer um comentário rápido sobre a “moda” no ocidente de se escreverem nomes em japonês. Primeiro, nomes ocidentais são sempre escritos em katakana, que é apenas uma forma fonética de se escrever o nome2. Tem gente que aparece com um monte de ideogramas tatuados no corpo e diz que aquilo é seu nome em japonês. Não é. O único caso em que um estrangeiro recebe um nome em kanji é se ele se naturaliza japonês, o que é bastante raro. Nesse caso, ele deve escolher um nome em ideogramas para usar em seus documentos oficiais. Um exemplo é o jogador de futebol brasileiro Alessandro Santos, naturalizado japonês que utiliza o nome 三都主. O nome pode ser lido como santosu, mas não tem significado real (seria algo como o “chefe das 3 capitais”). Outra forma de escolha dos ideogramas é pelo significado, por exemplo, considerando o significado da palavra “santo”, ele poderia ter escolhido o ideograma 聖人, que significa “santo” mas é lido seijin, se bem que nesse caso um nome assim não cairia bem considerando a humildade tão valorizada no Japão.

1 O romance mais tradicional do Japão, “A lenda de Genji”, que celebra 1000 anos este ano e é considerado o mais antigo do mundo, foi escrito por uma mulher exclusivamente em hiragana.
2 Diferente do chinês, que não usa alfabetos fonéticos e portanto também usa ideogramas para palavras estrangeiras. McDonald’s no Japão é マクドナルド, na China, 麦当劳. Uma guria chinesa me contou que muitos chineses acham que a Pepsi Cola é chinesa por causa disso. Se bem que muitos gaúchos já acharam que “a Pepsi é gaúcha”. ;)