quinta-feira, abril 19, 2007

Fronteira com a Coréia do Norte

Mais de um mês e tinha ficado faltando o post sobre a zona desmilitarizada da Coréia... Agora vai!

Não sabendo nada da Coréia, tinha dois lugares que eu gostaria de conhecer. A capital, Seoul (서울), e a fronteira com a Coréia do Norte. Há alguns anos uma amiga visitou a fronteira e eu vi as fotos, e coloquei na minha lista de lugares que gostaria de visitar. E pra entender o porquê tem que se falar um pouco de história da Guerra da Coréia.

No final da segunda guerra a Coréia (sem distinção de Norte ou Sul) estava ocupada pelos japoneses. A história da ocupação japonesa na Coréia por si só já é bem interessante, e recomendo pra quem tem interesse, mas não cabe aqui. Com o fim da guerra e a rendição incondicional dos japoneses, estes foram obrigados a desocupar a região, que então foi dividida em duas zonas de controle, dividas pelo paralelo 38°N.

E aí nasce a guerra-fria! A parte Norte ficou controlada pelos soviéticos enquanto a Sul pelos americanos. Tres anos depois, em 1948, foram fundadas as duas repúblicas independentes da Coréia, com regimes políticos distintos de acordo com a zona de influência que ficaram, e os dois com a certeza de que o seu regime era o mais apropriado para a grande nação coreana que se unificaria um dia. Em 1950, com o apoio dos soviéticos que o colocaram no poder, Kim Il-sung, o “eterno presidente da Coréia” e pai do atual maluco que dirige o Norte, resolveu invadir a Coréia do Sul. O ataque foi de surpresa e teve bastante sucesso, em pouco tempo ocupando praticamente toda a península coreana com exceção da região ao redor de Busan (부산), ao Sul da península.

O alvoroço internacional foi grande, e a ONU logo autorizou o envio de tropas à região para auxiliar o Sul a retomar seu território. O desembarque das tropas americanas na região de Busan foi decisivo e equilibrou as forças, e o fronte de batalha foi rapidamente empurrado de volta ao Norte, ao paralelo 38°. Mas o comando militar resolveu continuar a investida, e logo a península praticamente toda estava tomada pelas tropas americanas. O governo da China, temendo uma nação Ianque tão próxima de sua fronteira, enviou ajuda militar à Coréia do Norte, que conseguiu então retomar a maior parte de seu território original.

No dia 27 de Julho de 1953 os representantes dos dois países se reuniram próxima a então linha de conflito e assinaram um cesar-fogo, concordando em recuarem dois quilômetros cada do então fronte, criando uma zona desmilitarizada. Essa região, portanto, é uma faixa de 4 quilômetros de largura, não ocupada, que divide as duas Coréias, com apenas um ponto de encontro em toda sua extensão, a Área de Segurança Conjunta (JSA), próximo de onde foi assinado o acordo. As duas Coréias permanecem, então, teoricamente em guerra, já que um tratado de paz nunca foi assinado, mas ambos os lados estão em um cesar-fogo que já dura mais de 50 anos. E até 1991 todas as discussões de paz eram feitas neste local, em pequenas salas de reunião que se localizam exatamente sobre a linha do armistício.

Visitar a JSA não é um passeio fácil. Não é possível simplesmente ir lá por conta própria. Mas algumas agências de turismo organizam excursões até o local, todas de forma muito controlada e com regras rígidas. Primeiro, a região é proibida a civís coreanos. É necessário apresentar passaporte estrangeiro, que é verificado diversas vezes até chegarmos efetivamente lá. Também, deve-se assinar um termo isentando a ONU de qualquer dano sofrido enquanto estamos lá, incluindo morte, além do comprometimento de não fazer qualquer gesto ou provocação aos guardas no local. Os trajes usados devem ser discretos, sendo proibido o uso de roupas com temas militares, calças rasgadas, bermudas etc. Enfim, fica bem claro que não estamos indo a um lugar qualquer.

Como havia dito, queria muito visitar a região, mas precisávamos encontrar a excursão adeqüada. Algumas agências vendem o pacote até a zona desmilitarizada, mas excluem a visita à JSA. Recolhemos vários folhetos de agências e escolhemos os que pareciam pacotes mais completos. Mas ao telefonar para fazer reserva, sempre nos informavam que não havia vagas, o que nos deixou bastante chateados. Teríamos que voltar a Coréia se quiséssemos visitar a zona desmilitarizada.

Mas já havíamos visitado as principais atrações de Seoul, e vimos que a maior parte das excursões se reuniam no mesmo lugar para sair. “Devem ser todas a mesma excursão montada por uma operadora, que vende por outras empresas.”, pensei, e resolvemos arriscar aparecer no dia seguinte cedo no local para ver se não conseguíamos a vaga de alguém que tivesse desistido. Chegando lá, encontramos a operadora, e dissemos que gostaríamos muito de fazer o passeio, apesar de não termos reserva, caso houvesse alguma desistência. Um Senhor, que parecia o dono da companhia, me disse que infelizmente a excursão daquele dia era para turistas japoneses, e que seria toda em japonês. Aha! “Eu sei japonês!”, exagerei, explicando que morava no Japão e que estaria tudo certo. Já havia lido bastante sobre a região então a explicação da guia não faria tanta falta. E quanto as orientações de segurança, até fiquei um pouco apreensivo, mas sabia que mantendo-me atento, com bom-senso e fazendo tudo como os outros faziam não teria maiores problemas. O Senhor aceitou nosso pedido! Lá fomos nós para a fronteira com a Coréia do Norte em um ônibus cheio de japoneses!

O ônibus toma a “estrada da liberdade”, uma rodovia larga de 8 pistas que liga Seoul a Pyongyang. Saindo de Seoul a estrada até é normal, com carros civís, mas a medida que nos aproximamos da fronteira ela vai ficando deserta, os automóveis vão dando lugar a caminhões militares e de carga, e se nota a grande quantidade de postos de observação militar junto à costa, de poucos em poucos metros, além de uma cerca que isola toda a área. Uma estrada desse tamanho obviamente não é pra transportar a população de uma cidade a outra, e se diz que o objetivo dela é fazer uma rápida distribuição das tropas no caso de um eventual confronto. No ônibus, mais uma vez, uma verificação detalhada dos passaportes, feita pelo fotógrafo do grupo que eu aposto ser um ex-militar que acompanhava o grupo. O Senhor dono da agência nos acompanhou, pois ele falava chinês e ia explicando tudo aos chineses que estavam no grupo. Apesar de não fazer as explicações em inglês, ele foi sempre muito atencioso com a gente.

Após mais uma verificação de passaportes, entramos na base de Camp Bonifas, da ONU, na entrada da área desmilitarizada. Lá não se podem tirar fotos, e assistimos uma apresentação sobre o histórico da região e da base. O lema da base é “In Front of them All”, e dizem que é uma das bases da ONU mais tensas de se trabalhar, pela forte presença das tropas inimigas a poucos quilômetros de distância. Trocamos então de transporte, dos ônibus da agência para ônibus azuis da ONU, conduzidos por militares, e fomos para a Área de Segurança Conjunta (JSA).

O passeio por lá durou cerca de meia hora. Visitamos uma das salas de conferência que ficam sobre a fronteira (a linha passa exatamente sobre o centro da mesa), podendo entrar alguns metros na Coréia do Norte. Subimos em um mirante que permite olhar um pouco melhor para o lado Norte, e depois fomos a um local onde se pode ver o local de assinatura do armistício. Voltamos ao ônibus e passamos pelo local do incidente do machado, último confronto ocorrido na região, onde havia uma árvore que bloqueava a vista entre dois pontos de controle da ONU. As forças da ONU ordenaram a derrubada da árvore, mas o exército Norte-coreano se opos, o que causou um confronto que resultou na morte de um Capitão da ONU e outro soldado, e no fim da liberdade de passagem dos soldados dos dois lados na Área de Segurança Conjunta. Hoje, as tropas de cada lado ficam do seu lado da fronteira. O nome da base da ONU é em homenagem a este Capitão, Arthur Bonifas. Antes disso, curiosamente, conseguimos avistar turistas visitando a Área de Segurança Conjunta pelo lado Norte, o que nos deu uma sensação bastante estranha. Era como ver uma versão da gente em um universo paralelo. :)

Voltamos a base da ONU, passando obviamente pelo gift-shop, e tomamos nosso ônibus civil de volta a Seoul. Foi um passeio curto mas muito interessante: visitar um dos berços da guerra-fria, e que talvez venha a ser um dos últimos resquícios dela. Ainda teria muito mais o que escrever sobre a visita, mas tem coisas que só estando lá para sentir.