sexta-feira, dezembro 19, 2008

Dobraduras do George Soros

Acabei de voltar de Taiwan (台湾), estive lá por 4 dias e achei o país bem agradável, mas deixo pra escrever minhas impressões em um próximo post. O que eu vou contar hoje é uma situação que presenciei no trem de Tokyo até o aeroporto de Narita, uma história do cotidiano mas que ilustra algumas características do povo japonês.

O aeroporto de Narita (成田空港) fica a cerca de uma hora de trem ao leste de Tokyo. Tem mais de uma linha que vai pra lá. Em geral, costumo pegar a mais barata, que pra mim oferece o melhor custo benefício. É uma linha comum, logo, tem muitos passageiros que não estão indo para o aeroporto, mas apenas indo para o leste de Tokyo para visitar alguém, voltar pra casa etc. Indo para Taiwan, peguei o trem na estação inicial. Em seguida sentou na minha frente uma senhora já de idade avançada. Fiquei observando ela, achei seu rosto familiar mas não conseguia associar a ninguém conhecido.

Depois de alguns minutos, notei que ela estava fazendo origami (折り紙, lit. dobradura de papel). Não reconheci na hora qual a figura que ela estava fazendo, o que reparei é que não era um origami “amador”, simples. Inclusive ela utilizava papel especial para origami (um lado vermelho, o outro prateado). Continuei observando a senhora e suas dobraduras e vi que ela tinha bastante destreza, além, claro, de boa memória para lembrar toda a seqüência de passos.

Achei aquilo interessante. É um ótimo passatempo para as viagens de trem, pensei, muito melhor do que os videogames que os jovens costumam utilizar. Também, deve ser uma boa forma de exercitar a mente e evitar o Alzheimer, já que exige bastante concentração e memória para lembrar de todos os passos da dobradura. Imagino que seja tão eficiente quanto fazer palavras cruzadas, com o benefício de ainda exercitar a coordenação motora.

“Ah, claro!”, pensei, ao me dar conta de quem ela parecia. Ela era a cara do George Soros! Não acho que seja uma ofensa, porque é o George Soros que tem cara de velhinha! Continuei a observando e vi que ela fazia uma figura atrás da outra, sem parar. Em poucos minutos ela fez umas 3 ou 4. As folhas de papel tinham uns 20x20 cm, e cada figura ficava do tamanho de uma xícara de cafézinho. Ao terminar cada uma, ela as colocava de volta na bolsa e puxava outra folhina para começar a próxima. As folhas já estavam dobradas ao meio, o primeiro passo comum de todas as figuras que ela montava. Imagino que ela, em casa, já antecipasse esse passo para agilizar o processo no trem.

Mais tarde, outra senhora, sentada do lado da “origamista”, fez algum comentário sobre as dobraduras, e as duas começaram uma interessante conversa espontânea que raramente se vê nos trens do Japão, exceto eventualmente por idosos como elas. Falaram da vida, dos origamis, da família, da idade etc. A senhora das dobraduras contou que tinha 80 anos, ao que a outra respondeu, meio que sussurrando “Eu tenho 83...”. “Ah, então é minha irmã mais velha”, a primeira respondeu, e as duas começaram a rir. A “irmã mais nova” comentou que gostava de fazer dobraduras nas viagens de trem para matar o tempo, e que era bom exercício pra memória e para as mãos. Comentou que sabia fazer vários tipos, “todos completamente diferentes” disse ela com certo orgulho. Abriu a bolsa e começou a mostrar as figuras que já havia feito, as oferecendo todas para a “irmã mais velha” que, como todo japonês, as aceitou, claro. Fiquei imaginando como deveria ser a casa da “irmã mais nova”, cheia de origamis. Pelo menos, parecia, ela não era muito apegada as suas “obras” e facilmente as dava a estranhos. Alguns minutos antes, tinha visto, ela havia oferecido outras dobraduras a uma outra senhora que também a elogiou.

A irmã mais velha guardou as 6 dobraduras que havia ganhado, “todas completamente diferentes”, e ficou mexendo na sacola, como que acomodando as coisas ou procurando algo. Aí eu logo previ: “ela vai dar alguma coisa em troca para a outra”. Isso é quase “lei” no Japão, ainda mais considerando gente daquela geração. E, tiro e queda, ela puxa uma caixinha de biscoitos e a oferece para a senhora dos origamis, em retribuição pelas dobraduras.

É engraçado que até a língua japonesa reflete um pouco essa retribuição material por qualquer ação que recebemos de outras pessoas. Em japonês, o verbo para dar, presentear algo, a mim (ou alguém do meu grupo, família) é kureru (呉れる). E se alguém faz alguma coisa para mim ou meu grupo, o mesmo verbo é usado. Então, de certa forma, quando um japonês recebe uma ação, um favor ou gentileza de alguém, ele se sente obrigado a retribuí-lo como o faria se tivesse recebido algo material.

A história acaba chegando na estação da cidade de Narita (成田, uma antes do aeroporto), onde as duas “irmãs” desembarcaram. Mas gostei de presenciá-la pois ela ilustra estes pequenos aspectos da cultura japonesa e estas regras não escritas. Primeiro, tem a questão dos idosos, indo a qualquer lugar, continuando seus hábitos para manter uma vida ativa. Segundo, tem a questão da (rara) interação entre estranhos, um pouco mais comum entre pessoas daquela geração. E finalmente, a obrigatória retribuição, de ter que responder a toda e qualquer gentileza recebida.