terça-feira, abril 30, 2013

Epílogo, parte III

Lembro da quando voltava do Japão para o Brasil pela primeira vez em 2003. Enquanto ia em direção ao aeroporto de Kansai (関西), ao olhar as casas, lojas e ruas no caminho ao aeroporto e tendo estado lá por apenas alguns meses, sentia que ainda tinha muito do país que eu não havia descoberto. O Japão que eu via em 2003 ainda era misterioso e, se na hora eu não notava, retrospectivamente sinto que fiquei com uma sensação de “quero mais”.

Acho que foi em parte por isso que voltei ao Japão em 2006. Quando me mudei pra Tokyo (東京), minha ida era de certa forma sem prazo definido pois tudo dependeria da minha entrada no doutorado e de como ele prosseguiria. Quando primeiro estive em Tokyo em 2003, admito que não gostei. Achei uma cidade cheia e barulhenta. Como dizia o Caetano sobre São Paulo, “chamei de mau gosto o que vi” e foi por aí. Mas depois de quase cinco anos morando lá, já tinha aprendido a gostar de tudo que faz de Tokyo uma das cidades mais legais do mundo. Não sei nem por onde começar. Gosto de Tokyo por não ser só uma cidade, mas diversas cidades diferentes que cresceram até se tornarem uma só, mas sem perder a identidade de cada uma. Gosto de Tokyo por sempre ter um evento interessante de nível mundial para se participar, por sempre ter um lugar novo para conhecer, sempre ter algum visitante para se mostrar a cidade, por ter todo tipo de produto para se consumir. Gosto de Tokyo por ser um lugar onde a vida acontece em outro rítmo e escala, e apesar disso as coisas sempre funcionarem: a cidade é limpa, o transporte é prático e eficiente, os serviços de primeira, a comida é variada e boa, as pessoas de toda parte.

Tendo uma cidade assim sempre a disposição, com o tempo a gente vai parando de dar valor, fazendo sempre as mesmas coisas, criando uma rotina. E no momento em que a gente decide ir embora, repentinamente volta a dar valor e resolve fazer todas as coisas que ainda não fez. Quando resolvi ir embora, comigo não foi diferente.

Uma dessas coisas que sempre quis fazer era dar uma volta caminhando pela linha Yamanote (山手線). A Yamanote é uma linha circular de trem que passa pelas principais vizinhanças de Tokyo. Originalmente era a linha que ligava as diversas “cidades” que atualmente formam Tokyo; hoje em dia é uma linha urbana. Com cerca de 35 km de extensão, é um símbolo da cidade, e seus trenzinhos verdes são usados em brinquedos, souvenirs, despertadores; até um CD com as musiquinhas que tocam na plataforma de todas as estações está a venda. Quando comentei que estava indo embora do Japão, meu amigo Terabe lembrou do nosso antigo trato de um dia fazer essa caminhada, e decidimos que tinha chegado a hora.

Só que uma caminhada de 35 km toma tempo. Por isso, decidimos que deveríamos começar bem cedo pela manhã, para fazermos o passeio com calma durante o dia. Os primeiros trens de Tokyo circulam pelas 4 horas, então se saíssemos de casa para nos encontrarmos na estação da Yamanote mais próxima, teríamos que acordar cedo demais. Aí tivemos a brilhante idéia de combinar esse passeio com outra coisa que há tempos gostaríamos de experimentar, e que pra mim essa seria a última chance: passar uma noite nos famosos “hotéis cápsula”.

Pra quem não conhece, os hotéis cápsula são pequenas “caixas” do tamanho de uma cama, onde se pode pernoitar. Acho que a origem vem do boom econômico do Japão nos anos 80, onde o preço do metro quadrado era absurdamente alto (diz-se que e o valor da área tomada pelo Palácio Imperial era mais alto que de toda a área da California). Hoje em dia, economicamente falando, nem são grande negócio, já que se encontram hotéis econômicos às vezes por preço até mais em conta. Mas nossa escolha pelo hotel cápsula foi pela experiência, e escolhendo um próximo a uma estação da Yamanote, começaríamos nossa caminhada ainda cedo.


A estadia foi interessante. Ao se chegar, você deixa suas coisas num armário e leva apenas sua roupa para dormir, escova de dente, etc, para o “quarto”, que na verdade é um andar com várias cápsulas e um banheiro compartilhado. A cápsula em si não é tão apertada e tem uma pequena porta que não fecha completamente, então não chega a causar tanta claustrofobia. O problema é que se tiverem muitas pessoas no seu andar, pode ser um pouco barulhento com os roncos reverberando nas outras cápsulas. :) Em geral esses hoteis são apenas para homens—o público alvo são os “salarymen” (サラリーマン), funcionários japoneses, que perderam o último trem e não tem como voltar pra casa—, mas ouvi que alguns tem andares só para mulheres.

A noite foi razoavelmente confortável. No dia seguinte acordamos cedo e começamos a caminhada às 5 horas. Fizemos duas longas paradas, uma para o café da manhã e outra para o almoço. Durante o almoço sentimos outro terremoto longo e forte, nos lembrando que apesar do ótimo dia, as coisas ainda não estavam “normais”. Caminhamos tranquilamente, tiramos muitas fotos. Foi ótimo realmente “sentir” Tokyo e todas as suas vizinhanças. A caminhada total levou cerca de 13 horas e terminamos com o sensação de missão cumprida, Tokyo desvendada. O álbum completo de fotos pode ser visto aqui.


Além de Tokyo, havia outras cidades importantes do Japão que eu ainda não tinha visitado. Conhecer todas seria impossível, mas duas em especial eu gostaria de visitar: Kobe (神戸) e Himeji (姫路). Nos últimos dias organizei uma rápida viagem para as duas, e também para melhor explorar Osaka (大阪), por onde já tinha passado algumas vezes, mas nunca explorado mais a fundo.

Kobe é um dos principais portos do Japão, famosa por ser o ponto de saída dos imigrantes japoneses que vieram para o Brasil, e mais recentemente em 1995, pelo grande terremoto de Awaji. Lá visitei o porto, o museu de “redução de desastres” sobre o terremoto, o museu marítimo e caminhei bastante pela cidade. Em Himeji, cidade menor, a principal atração é o seu castelo. O lugar foi usado como cenário no filme Com 007 só se Vive Duas Vezes (You Only Live Twice). O que eu não sabia é que o castelo estava em restauração. Mesmo assim, valeu a visita, pois ele estava aberto e era possível pegar um elevador até em cima do telhado, coisa que geralmente não é possível. As cerejeiras da praça em frente ao castelo estavam todas floridas, e as pessoas aproveitando para fazer hanami (花見) num clima muito agradável. Em Osaka visitei as principais atrações como o famoso Aquário e o prédio Sky Umeda, além de uma visita interessante ao museu Momofuku Ando em homenagem ao criador do macarrão instantâneo, visita obrigatória para qualquer fã de Miojo.





De volta a Tokyo, chegava o momento das despedidas. Tentei reencontrar todos que fizeram parte da minha vida por lá: colegas de laboratório, meu professor e, claro, amigos. Delvolver o apartamento foi mais simples que esperava. Algumas coisas maiores enviei de volta ao Brasil pelas empresas de mudança que geralmente atendem aos dekasegis em regresso, e o serviço foi bastante eficiente: de porta a porta resolvendo todas as questões de alfândega. Consegui também doar a maior parte das coisas de casa para outros estudantes e os poucos itens que não achei interessado tive que jogar fora, comprando os selos necessários para lixos de “grande” volume. Aos poucos, meu apartamento em Tokyo, onde morei por 3 anos, foi ficando vazio. Sensação esquisita. Marquei o dia e hora para as visitas das empresas de água e energia (a TEPCO, mesma operadora da usina de Fukushima) e no horário combinado as duas apareceram, conferiram o contador, e pude pagar na hora o valor devido ao funcionário. Eficiência japonesa, como de costume. Agora sem água e energia, apenas com minha mala de volta, me mudei nas últimas noites para casas de amigos. Ser “turista” na sua própria cidade e uma sensação muito estranha.

E no dia 21 de Abril de 2011 o capítulo japones terminou. No trem para o aeroporto lembrava da mesma situação anos antes. Dessa vez o sentimento era diferente. Eu olhava as vizinhanças cortadas pela linha do trem e pensava que se eu não havia estado ali, com certeza tinha estado em muitos outros lugares parecidos. Se não sabia o que tinha dentro de cada uma daquelas casas, tinha uma certa idéia de que ela era semelhante a tantas outras casas de japoneses que conheci. Sabia que se caminhasse por aquelas ruas conseguiria certamente entrar numa loja e sair com o que eu queria, encontrar meu caminho, enfim, o mistério (mas não o encanto) tinha acabado, o Japão havia sido desvendado. Mesmo eu não falando fluentemente o idioma, eu conhecia as pessoas, sabia como elas pensavam e agiam, tinha visto suas casas, escolas, empresas, ruas, parques, enfim, o país não era mais estranho.


Acho que saí do Japão em um bom momento. O Japão é um país fantástico, mas o que mais surpreende o visitante é como as coisas podem ser diferentes, como a cada momento você pode ser surpreendido por algo completamente inesperado, ou pelos pequenos detalhes que são tão importantes por lá, sejam nas coisas ou nas pessoas. Aprendi muitas coisas por lá, entre elas:
  • A capacidade do povo japonês de sempre se colocar no lugar do outro, e guiar todas suas ações em função disso.
  • O senso de grupo. Somos todos parte de diversos grupos e temos responsabilidade junto a eles.
  • Assumir por padrão que os outros agem de boa fé, e corresponder a esta expectativa agindo da mesma forma. Quando dois japoneses se encontram pela primeira vez, não é “prazer em conhecê-lo” o que dizem, mas sim “よろしくお願いします” (yoroshiku onegaishimasu), que pode ser traduzida como algo próximo de “por favor, sejamos bons/corretos/gentis um com o outro”.
  • A valorização do esforço, acima da aptidão.
  • A constante busca pela melhoria no que se faz, em todos os aspectos da vida.
  • A busca pela harmonia e a prevenção de conflitos.
O Japão virou parte de mim e, se não penso mais em morar lá, sei que ainda visitarei muitas vezes o país. Ao encontrar um amigo japonês no Brasil um ano após a minha volta, após ele ter pela primeira vez passado pela relativamente longa viagem do Japão para o Brasil (cerca de 35 horas) ele me disse algo muito interessante que ficou na minha cabeça:
“A gente tem sorte que o mundo é de um tamanho bom. Ele não é nem tão pequeno que não tenha espaço para todo mundo, nem tão grande que seja muito difícil de ir para qualquer lugar. Mesmo do Japão para o Brasil, extremos opostos, não leva nem dois dias. É cansativo mas dá pra aguentar.”
E realmente: o mundo é de um tamanho ideal. Tem muita coisa pra se ver, mas está tudo ao nosso alcance.

さよなら日本!

segunda-feira, março 18, 2013

Epílogo, parte II

Já era sábado, mas não dia de descanso.

Passada a primeira noite pós-terremoto, todos no Japão ainda estávamos confusos sobre o que iria acontecer. É preciso lembrar que terremotos de menor intensidade continuavam ocorrendo. O chão constantemente balançando é algo difícil de se acostumar.

Resolvi me preparar um pouco mais para qualquer eventual problema. Primeiro, pensei, precisava de um meio de transporte, e ao verificar minha bicicleta, que não usava fazia uns meses, notei que seu pneu estava furado e lá fui eu levá-la para o conserto. Aproveitei também para comprar uma cestinha para acoplar ao guidon para poder transportar qualquer coisa que precisasse. No caminho, vi um poste de energia levemente tombado para o lado. Foi o único estrago aparente na minha vizinhança. Em seguida, fui ao supermercado, e apesar de não ter desabastecimento, havia um anúncio de que o horário de operação naquele sábado e no dia seguinte seria restrito, justamente para controlar o consumo.

De volta em casa, ficava acompanhando as notícias de Fukushima (福島) e à tarde vi a explosão do primeiro reator na TV. Apesar da apreensão inicial, nessas horas o que me trazia mais tranquilidade era me informar o máximo possível a respeito da tecnologia nuclear: como funcionava o reator, porque ele precisava ser resfriado, como era sua construção, etc. Era uma tarefa complicada, pois a mídia se dividia entre “o Japão está acabando” (mídia ocidental) e “não há nada a temer” (mídia japonesa) e o que eu queria não era opinião sobre nenhum dos lados, mas sim os fatos técnicos que me deixassem chegar as minhas próprias conclusões. Ao ver a explosão, tentei me informar se era de fato algo “semelhante a Chernobyl”, como muitos diziam, ou algo mais controlado. Logo aprendi que Chernobyl foi uma explosão de um reator em operação, que incendiou, e não tinha a “panela de pressão” (RPV), dispositivo de segurança que em Fukushima ainda estava intacto. A explosão, sites mais técnicos diziam, era provavelmente por acúmulo de Hidrogênio e apesar de emitir partículas radioativas ao ambiente, não eram um risco a médias distâncias (Fukushima fica a cerca de 300 km de Tokyo), já que esses elementos teriam meias-vida curtas e os níveis de radiação não eram muito altos. Mas por precaução, enchi minha banheira com água, caso partículas radioativas chegassem a Tokyo.

Na tarde de domingo, o sistema de som público do meu bairro começou a anunciar alguma coisa. Fiquei bastante nervoso, pois no início não entendia e nunca havia ouvido aquele sistema fazendo anúncios (em geral esses sistemas ficam em escolas e tocam um sinal todo dia às 17:00, mas nada além disso). Depois eu entendi que o anúncio era para economizarmos energia, pois como as usinas haviam sido desligadas, poderiamos ter problemas de abastecimento. Estava ainda um pouco frio, mas evitei usar o aquecedor, a partir daí. Fiquei pensando nas pessoas na região afetada, onde com certeza estava mais frio, e com menos energia. Com a casa abastecida e a bicicleta arrumada, a principal atividade do fim de semana foi contatar os amigos para saber se todos estavam bem. Mesmo os que moravam em Sendai (仙台), região mais afetada pelo tsunami (津波), estavam a salvo.

Segunda-feira, 14 de março, dia de voltar ao trabalho. Como os tremores continuavam (cada vez mais espaçados, mas ainda várias vezes ao dia), não me animei a ir de trem. Resolvi percorrer o trajeto de cerca de 25 km de bicicleta, e vi no caminho várias outras pessoas que pareciam ter feito a mesma escolha. Estes paravam suas bicicleta nos cruzamentos e ficavam conferindo mapas, placas, indicando que aquela não era a sua rotina habitual. De volta ao trabalho, mantinha a página da TEPCO aberta e conferia os updates da situação da usina, além das leituras de radiação em cada um dos quatro cantos da usina atualizados de 15 em 15 minutos (minha atenção principal era no lado voltado para Tokyo, é claro). Ainda pela manhã, aconteceu mais uma explosão no prédio de outro reator. A explicação era a mesma de antes, então ainda estava tudo “sob controle apesar do caos”. Eu entendia no momento que devido à grande quantidade de água usada para resfriar os reatores em Fukushima, a contaminação toda estava indo pro solo (e mar) da região, e que estes provavelmente ficariam inabitáveis por muito tempo, mas era uma situação completamente diferente da Europa na época de Chernobyl, onde a contaminação foi toda pelo ar. Expediente encerrado, de volta pra casa no primeiro dia da semana da nova “normalidade”.

Terça-feira, 15 de março, acordo e ainda antes de levantar leio a notícia de que o reator 4 também havia explodido nas últimas horas. Esse, eu sabia, era diferente dos outros, pois usava plutônio como combustível, que além de radioativo era também altamente tóxico, diferentemente do urânio usado nos outros dois. O pensamento que me veio a cabeça não foi tanto de estar em perigo devido a explosão, mas sim por uma possível histeria coletiva que viesse a acontecer. Caso todos resolvessem abandonar Tokyo, pensei, eu estaria em desvantagem, por ser estrangeiro e não falar muito a língua local. Resolvi então que sairia de Tokyo preventivamente naquele mesmo dia. Se não por ser um risco real, pelo menos para descansar a cabeça. Preparei uma mochila, peguei um dinheiro que tinha reservado, avisei meu chefe que não iria ao escritório naquela semana (mas levava comigo o computador para trabalhar à distância) e fui a estação de Tokyo (東京駅) comprar uma passagem de Shinkansen (新幹線, o trem-bala) para Hiroshima (広島). Na estação, apesar de uma terça-feira de manhã, havia uma razoável fila para comprar passagens, principalmente de mães com crianças. Apesar de muitos comentários desinformados sobre a “ironia de ir para Hiroshima para fugir da radiação”, fui para lá por dois motivos principais. Primeiro, Hiroshima é uma cidade muito agradável, onde eu sempre me senti bem em visitas anteriores e recomendo para qualquer pessoa que visite o Japão. E também porque Hiroshima fica a 800 km de Fukushima, a uma distância segura, e na metade do caminho entre Osaka (大阪) e Fukuoka (福岡), duas cidades com aeroportos internacionais bem conectados, caso resolvesse sair do Japão. Fiquei no albergue de Hiroshima e encontrei muitas pessoas, japoneses e estrangeiros, na mesma situação, que queriam principalmente um lugar para desestressar. E ao passar a primeira noite lá, sem sentir um único terremoto, e sem racionamento de energia, já comecei a me sentir melhor.

E foi em Hiroshima que, passeando pelos seus jardins e conversando com amigos, refleti bastante sobre a vida, valores, objetivos, e concluí que meu capítulo no Japão tinha chegado ao fim. Após a formatura, havia resolvido trabalhar em Tokyo por cerca de um ano como experiência, e apesar de ela ter sido extremamente positiva, pois experimentei um tipo de vida diferente da de estudante em Tokyo, senti que aquele não era mais o caminho que queria seguir, que não tinha motivos suficientes para continuar lá além da comodidade de permanecer na mesma situação, muito agradável, convenhamos, mas sem muitas perspectivas para o futuro. Precisava sair da minha zona de conforto. Pensei também que o Japão passaria por um grande momento de reflexão e foco na reconstrução e eu lá, como visitante, seria mais um transtorno que uma ajuda, como um convidado na casa de uma família que passa por uma situação difícil. Era metade de março e eu já estava com a passagem comprada para ir de férias ao Brasil no final de abril. Resolvi, então, que o cronograma se acertava. Fiquei em Hiroshima até o final de semana e ao voltar a Tokyo avisei na empresa que estaria saindo no mês seguinte, trabalhando até lá para terminar os detalhes que haviam ficado pendentes no projeto que estávamos terminando.



Como se termina uma vida de 5 anos em um país estrangeiro? Isso vocês vão saber na terceira e última parte desse epílogo. :)

segunda-feira, março 11, 2013

Epílogo, parte I

Eu lembro exatamente onde estava há exatos dois anos. Estava sentado trabalhando quando o prédio começou a tremer. Já descrevi aqui a sensação de um terremoto no Japão: o prédio balançando no sentido horizontal, como se um gigante o tivesse chutado. Dessa vez, era uma tarde de sexta-feira e o prédio mais uma vez começou a balançar. Só que então, ao invés de logo parar, a coisa foi ganhando força. De repente o prédio não mais sacudia só em um eixo horizontal, mas em duas direções, de forma meio circular. Levou uns segundos até pensar que este podia ser “o grande” terremoto tanto esperado. Me veio na cabeça imagens da destruição de Kobe (神戸) de 1995, dos prédios tombados, e pensei que se realmente fosse o esperado grande terremoto de Kanto (関東), aquilo poderia acontecer no prédio que eu estava, também.

Pela primeira vez na vida a morte me passou pela cabeça. Virei para meu colega japonês para perguntar se deveríamos sair do prédio e, ao ver a sua cara de pânico, resolvi tomar imediatamente uma atitude. Desci as escadas em direção à rua. Chegando lá, todo mundo da vizinhança já tinha também saído dos seus prédios. Se ouvia um murmurinho e via a cara assustada de todos. Senti as ondas de choque propagando-se pelo chão: não era possível vê-las, mas sentia claramente diferenças de pressão em cada uma das pernas, como se o solo estivesse fazendo uma “hola”, como se estivéssemos em um navio. Após o primeiro terremoto terminar, voltamos ao prédio para verificar se estava tudo OK, mas ficamos todos atentos para qualquer novo tremor.

A primeira réplica veio. Saímos novamente, e fomos a um estacionamento perto da empresa que também era classificado como zona de refúgio. Víamos os prédios e postes balançando. Mesmo não vendo destruição alguma em Tokyo, sabíamos que em algum ponto a coisa deveria ter sido feia.



Há quase um ano estava trabalhando em Tokyo. Após a formatura do doutorado, tinha duas opções: ou voltar ao Brasil apenas com o título, e provavelmente seguir carreira acadêmica, ou experimentar o ambiente profissional, o que me interessava mais. De cara eliminei a possibilidade de trabalhar em uma empresa japonesa, pois nem possuo domínio suficiente da língua para uso profissional, nem acho que me encaixaria nas regras rígidas e inflexíveis (e de certa forma improdutivas) da cultura profissional japonesa. Procurei então vagas em empresas internacionais em Tokyo, e acabei recebendo uma oferta de uma empresa da qual fiquei sabendo ao ler uma entrevista do fundador uns anos antes, que despertou meu interesse por ser fundada e composta em grande parte por estrangeiros.

Desde que havia começado a trabalhar, nunca mais tinha encontrado meu grande amigo Sérgio, um moçambicano que fora meu colega no do curso de japonês, logo que chegamos ao Japão. Nesse mesmo dia tínhamos combinado de sair para jantar e colocar o papo em dia. Quando ficou claro que não haveria mais expediente naquele dia, tentei ligar para o Sérgio, para decidirmos se mantínhamos os planos ou adiávamos a nossa janta. Obviamente os telefones estavam todos congestionados, então por email combinamos de manter o acertado, já que os trens estavam todos parados e seria difícil voltarmos para nossas casas, de qualquer forma.


Saí do trabalho pelas 16:30, e resolvi fazer uma caminhada até o local onde ele trabalhava. Normalmente, levaria cerca de uma hora, mas como ele sairía só mais tarde, fui com calma, parando no caminho, observando as pessoas. Havia muito movimento nas ruas. Ao passar por uma pequena loja de eletrônicos, vi diversas pessoas em frente a vitrine assistindo às primeiras imagens dos estragos do tsunami (津波) em Sendai (仙台) pela TV. Nessa hora já sabíamos onde a destruição havia sido maior. Continuei minha caminhada, até um centro comercial onde pensei ser um bom local para esperar até o Sérgio se liberar. O prédio estava repleto de pessoas, sentadas em todo canto, no chão inclusive, coisa bastante incomum no Japão. E de tempos em tempos, quando o prédio voltava a tremer, o silêncio tomava conta do ambiente.


Finalmente nos encontramos e fomos para um izakaya (居酒屋), boteco típico japonês. Esses bares são muito populares entre colegas de trabalho nas sextas-feiras, e nesse dia não era diferente. Começamos a colocar o papo em dia, comentamos como estávamos vivendo desde que terminamos os nossos cursos, e que aquele era um momento histórico. Reparamos o quão surreal era a cena: o país certamente estava passando por uma de suas maiores tragédias, e as pessoas rindo, bebendo e “se divertindo” como se fosse uma véspera normal de final de semana, enquanto as imagens do tsunami no aeroporto de Sendai apareciam na TV do bar ao fundo. Concluímos que não era insensibilidade, mas sim que de fato não tinha mais nada o que se fazer, e o mais apropriado numa situação dessas era não deixar se abater, deixar a sensação de normalidade permanecer: “Life goes on.”

Se os telefones não funcionavam para voz, a rede de dados não teve maiores problemas. A primeira coisa que fiz quando tive a possibilidade, ainda à tarde, foi enviar emails a minha família, à Fernanda e amigos dizendo que estava tudo bem e sob controle em Tokyo. Agora, no bar, verificava Twitter, email e Facebook em busca de mais notícias. Lembro que ainda lá recebi os primeiros rumores de que a TEPCO estava tendo problemas para resfriar os reatores da Usina Nuclear de Fukushima (福島第一原子力発電所). Como eu sabia que esses reatores precisavam de resfriamento ativo em caso de desligamento, fiquei bastante preocupado, já que tinha certo conhecimento sobre no que isso poderia acarretar.

Continuamos nossa janta, e vi no celular que as primeiras linhas de metrô estavam recomeçando a circular. Era hora de voltar pra casa, “se ela ainda estiver de pé”, brincamos. Apesar da linha que ia até a minha casa ainda estar inoperante, com os metrôs em circulação poderia ir até a estação de Shinjuku (新宿駅) e chegando lá esperar meu trem. Tentei embarcar, mas o mar de gente me fez desistir, e desci na estação seguinte. Resolvi fazer o caminho a pé até Shinjuku. Daria cerca de duas horas, mas a noite estava agradável, meu trem ainda não estava operando de qualquer maneira, e muitas pessoas estavam fazendo o mesmo. Rapidamente improvisaram plaquinhas nas koban (交番, guaritas da polícia comunitária) com a direção a seguir para as principais estações. Para os que ainda tinham dúvida, simpáticos policiais respondiam quaisquer perguntas. Tudo tipicamente japonês.

Finalmente cheguei a estação de Shinjuku e vi que minha linha havia recém recomeçado a operar. Um mar de gente esperava para embarcar, e policiais controlavam o fluxo de gente, que se comportava exemplarmente como um único ser. Nessas horas o espírito de grupo do povo japonês é imbatível, inclui até os estrangeiros que ali também vivem. Os policiais diziam “venham, venham, venham” e de repente levantavam uma placa dizendo “parem!” e as pessoas paravam imediatamente e esperavam uns 5 minutos até que os policiais liberassem o fluxo novamente. E se uma pessoa ficava no grupo que tinha que esperar, ninguém dava uma “corridinha” pra passar pro grupo da frente. Além disso, ninguém era grosso com ninguém, todos solidários e trocando sorrisos. Mais educados que nas situações normais, até.


Depois de cerca de 20~30 minutos, embarquei no trem em direção à minha casa. Chegando na estação, passei numa loja 24 horas para comprar alguns mantimentos e água engarrafada, caso precisasse para uma emergência. A loja ainda estava cheia de produtos. Lembrava de ter lido que após um grande terremoto, havia grande chance de uma réplica forte, às vezes até mais que o terremoto original. Tinha medo que ela viesse durante à noite, enquanto eu estava dormindo, então ao chegar em casa preparei uma mochila com a água e os mantimentos, vesti minha roupa mais quente (estava um pouco frio e eu tremia, mas na verdade tremia mais de nervoso do que frio), me informei onde era o centro de refúgio mais perto, e finalmente tive tempo para “relaxar”. Minha casa estava não só inteira, como com apenas algumas coisas viradas ou fora do lugar. Falei com meus pais pela Internet, e deixei a TV ligada onde via os alertas de tsunami. Os tremores continuavam, a cada cerca de meia hora. Fiquei sentado no sofá assistindo TV, e lembro de ter conseguido dormir, sentado das 5 as 8 e meia da manhã.


Já era sábado, mas não dia de descanso.

(Continua…)