Uma atividade bastante comum no verão do Japão é escalar o monte Fuji (富士山). Aos 3776 metros, o vulcão extinto é o ponto mais alto do país e um símbolo nacional, pela estética do seu cone praticamente simétrico.
Existe uma temporada oficial de escalada ao monte Fuji, que vai do início de Julho a 27 de Agosto. Nessa época, a temperatura no topo é mais amena, a neve derrete e diversas cabanas estão abertas nas trilhas de subida provendo serviços para os andarilhos, que vão desde hospedagem para descanso até refeições e bebidas quentes. Estas trilhas existem em todos os lados da montanha e variam em termos de inclinação, do terreno - o que determina a dificuldade de subida - e das cabanas de suporte. Em todas as trilhas, as cabanas são distribuídas em estações numeradas, e geralmente qualquer escalada ao monte Fuji parte da 5ª estação, até onde existem estradas e alcançam os ônibus.
E foi da 5ª estação que partimos. Ano passado muitos dos meus amigos escalaram o Fuji, mas como ainda estava preocupado com a admissão do doutorado e não me sentia 100% preparado, resolvi adiar a “aventura”. Esse ano, sim, já mais apto, encarei a subida com meus amigos Mário (campeão do mundo) e Eunice. Pegamos o ônibus em Shinjuku (新宿) e cerca de duas horas depois chegamos na 5ª estação de Kawaguchiko (河口湖五合目) a 2305 metros de altitude. Descemos do ônibus, visitamos algumas das lojinhas turísticas, e nos preparamos para começar a subida: nos vestimos apropriadamente, comemos uns sanduíches e frutas, fomos no banheiro, preparação completa.
O Sol também é um símbolo para o Japão, tão ou mais importante que o monte Fuji. Ele é representado pelo círculo redondo na bandeira japonesa, e o próprio nome do país, 日本 (nihon ou nippon) identifica essa relação, significando a origem (本) do Sol (日). É daí que vem a expressão “país do sol nascente”. Dá pra imaginar, então, o que representa pro japonês o ritual de assistir o nascer do Sol sob o topo do monte Fuji. Esse é um dos planos mais comuns de subida ao monte Fuji: escalar durante a noite para alcançar o topo nas primeiras horas da manhã e descansar sentado sobre as pedras vendo o amanhecer. Nosso plano também era esse.
Às 8 horas da noite começamos a nossa “subida”. Digo “subida” porque ao iniciarmos a trilha reparamos que estávamos na verdade descendo. Achamos estranho, ninguém havia comentado conosco sobre isso, e pensamos estar no caminho errado, indo na verdade para o lado contrário. Mas não. Logo encontramos uma placa indicando o início da trilha e a partir daí começamos a subir.
“Escalada” faz pensar em equipamentos de alpinismo, cordas, pessoas penduradas. Mas a subida do Fuji não é assim. É apenas uma longa caminhada de algumas horas montanhas acima. É cansativo, mas não difícil. Talvez a maior dificuldade seja lidar com a multidão de pessoas que resolve subir junta todo ano. Cerca de 200 a 300 mil pessoas sobem o Fuji anualmente, o que dá uma média de aproximadamente 3 mil pessoas por dia da temporada. Suponho que a grande maioria faça a subida durante a noite. Em alguns momentos, realmente a rota parava, devido às excursões subindo lentamente pelo caminho. Eu, Mário e Eunice íamos passando esse povo, pelas laterais da trilha. Parávamos em algumas das estações, mas começávamos a ficar ansiosos quando todo o povo que havíamos passado começava a nos passar novamente, e continuávamos nossa subida. Apesar de termos ouvido que um dos maiores problemas que podem ocorrer na subída é acelerar demais e acabar passando mal, nosso grupo era de gente bem preparada que anda rápido. :) Fazíamos pausas para não forçar demais, mas quando era para andar, andávamos pra valer.
Muitas das pessoas que sobem o Fuji compram bastões de madeira para ir se apoiando durante a subida. Eles não são caros, custam cerca de 1000 ienes (~20 reais), mas em cada estação de subida é possível pagar para ter um carimbo estampado com ferro quente no bastão, mostrando o progresso e a realização do objetivo. Acredito que o bastão faz um souvenir legal com os carimbos, mas pensamos que seria apenas mais um peso morto para levar montanha acima, então decidimos não comprá-los, e posso dizer que pelo menos no meu caso não fez falta alguma. Foi bom ter as mãos livres chegando ao fim da subida, onde a trilha era mais íngrime e usar as mãos ajudava a subir - ou pelo menos manter o equilíbrio - sobre as pedras, o que nos ajudou a passar muita gente. A partir da 8ª estação (cerca de 3400 metros) já havíamos passado a maioria das pessoas e a trilha estava bastante vazia. Quando parávamos para recuperar o fôlego (e vai ficando mais difícil mantê-lo a medida que a altitude aumenta) podíamos ouvir um silêncio absoluto e aproveitar o visual da montanha iluminado sobre a lua cheia, o que dava um sentimento de paz e uma motivação a mais para alcançar o topo.
Durante a subida passamos por alguns toriis (鳥居), aqueles pórticos orientais que indicam o caminho para santuários xintoístas, já que no topo do Fuji também existe um pequeno santuário. À uma da manhã alcançamos um desses toriis, e passando por ele chegamos a mais uma cabana, mas essa estava fechada, sem iluminação. Passamos por ela e vimos que a trilha não continuava. Havíamos chegado ao topo, após cerca de 5 horas! Encontramos poucas pessoas que se preparavam com sacos de dormir e cobertas para algumas horas de descanso até que o sol nascesse. Nós também teríamos algumas horas de espera, então resolvi tirar mais alguns agasalhos da mochila e vestí-los - apesar de não estar sentindo frio no momento, por estar com o corpo ainda quente. Tirei meu casaco e fiquei alguns segundos apenas de camiseta no topo do Fuji, o que depois me fez sentir a musculatura contraída. Mas não tive problemas maiores. Escrevi alguns postais - existe uma agência do correio que fica aberta durante o verão no topo do Fuji! - e começamos a procurar um lugar para esperar a noite passar.
Lugar não faltava, apesar de muita gente começando a chegar e se instalar sobre uns estrados de madeira localizados estrategicamente onde o sol viria a nascer horas mais tarde. Mas preferimos ficar sentados na entrada da cabana que havíamos passado e estava fechada, pois era um lugar mais protegido do vento. O chão era de pedra e nada confortável, então tentamos usar nossas mochilas como encosto e proteção. Passada a excitação de termos chegado ao topo, o sono começava a bater, e cochilamos um pouco. Nessa hora o frio apareceu. A temperatura era de 7 graus, plenamente suportável para qualquer gaúcho que se preze ;), mas dormindo o corpo perde mais calor e a coisa complica. Senti bastante frio, e então resolvi me levantar e dar uma caminhada, o que remediou o problema. Mais pessoas foram chegando, o local foi ficando cada vez mais lotado, e pelas 2:30 da manhã uma das cabanas do topo abriu - felizmente não a nossa, pois pudemos continuar onde estávamos - e acabei comprando um café quente. Achei o preço justo: 400 ienes (~8 reais) por uma lata de café, mas no topo do monte Fuji e durante a madrugada! O café me deu energia, o frio passou e, talvez pela cafeína, o sono também. Fiquei atento e empolgado com o crepúsculo que, pelas 4 horas, começava a aparecer. Tiramos algumas fotos, e vimos que o povo todo que havia chegado depois da gente tinha tomado o lugar na nossa frente, então fomos procurar um outro lugar para esperar o exato instante em que o sol aparecesse.
Não foi difícil. Havia uma multidão, mas o topo do Fuji é amplo. Achamos uma região mais alta onde víamos muito bem o horizonte e as pessoas assistindo a nossa frente, mais abaixo. Ao nascer o Sol, pelas cinco da manhã, um Sr. japonês fez um breve discurso, e pedio para que todos gritassem banzai (万歳), grito de celebração japonesa, como o nosso “viva”. Foi então uma seqüência de banzais enquanto as pessoas levantávam os braços. Uma experiência única e emocionante que nunca vou esquecer.
Com o nascer do sol, a temperatura subiu e o dia estava bonito. O Mário estava um pouco tonto, talvez pela altitude, e preferiu voltar para a base. Apesar de estarmos em grupo, comentei com ele e a Eunice que eu me sentia muito bem e que provavelmente não voltaria a subir o Fuji, então pedi a compreensão deles de que gostaria de ficar mais um pouco, dar a volta na caldeira, ir ao correio e ao ponto mais alto do Fuji. Nos despedimos e comecei o passeio.
Voltei a uma das cabanas onde, mais cedo, havia visto um mapa do entorno da caldeira. O mapa estava todo em japonês mas consegui identificar onde estávam as principais “atrações” mas não identificava muito bem como contornar a caldeira. Segui por um caminho mas logo me dei conta de que aquela parecia a trilha de descida. Voltei, tentei pelo outro lado e, aí sim, encontrei o caminho. Ao chegar ao lado oposto de onde havíamos visto o nascer do sol vi, sob a montanha, a sombra perfeita do Fuji sob o vale. Momento de foto, claro. Segui em direção à estação meteorológica1 do Fuji onde sabia ser o ponto mais alto do Japão. Uma fila se espremia na pequena escada que dava acesso a estação e ao marco, e nela fiquei por uns 20 minutos. Felizmente já estava meio que institucionalizado que sempre a pessoa de traz na fila tirava a foto da pessoa da frente junto ao marco. Tirei minha foto, e continuei ao redor da caldeira para visitar o templo e o correio.
O templo estava bastante cheio, mas não conseguia encontrar o correio. Perguntei para um rapaz que parecia trabalhar lá em cima (ele havia recém solicitado a algumas pessoas que saíssem de uma área “off-limits”) e ele me informou que o correio estava fechado! Ficava aberto todo ano somente até o dia 20 de Agosto, semana anterior.
Paciência. Era então hora de descer. Encontrei a trilha de descida, e seu longo zique-zague em direção a 5ª estação. Na trilha paralela de subida dava pra ver muitos retardatários chegando ao cume. A descida é mais rápida, mas tão cansativa quanto a subida pelo impacto, escorregões no chão arenoso e falta de cabanas de serviço. Descia fazendo ainda um segundo zigue-zague dentro do zigue-zague original, descia em alguns momentos de lado e até de costas, para não cansar tanto os mesmos músculos da perna. Fazia paradas para tirar as pedras do sapato, para tomar água. A música nos fones de ouvido ajudava o tempo a passar, assim como tinha feito horas antes durante a subida quando me distanciava um pouco do Mário e Eunice. Até que enfim, com os pés ardendo, cheguei de volta ao ponto de partida.
Precisava então encontrar uma forma de voltar para Tokyo. Havíamos comprado apenas a passagem de ida - já que os ônibus diretos de volta estavam cheios - o que no fim foi bom pois não tive pressa para pegar o ônibus em um horário marcado. Mas isso implicava que deveria então ir até uma estação de trem e fazer ainda algumas baldeações até chegar em casa. Enquanto esperava na fila para comprar a passagem, o Mário e a Eunice me reencontraram. Eles haviam almoçado e ele já estava 100% recuperado. E lá viemos nós, juntos outra vez, de volta pra casa.
A experiência foi muito interessante e válida. Em qualquer conversa sobre escaladas do monte Fuji, sempre alguém comenta uma frase famosa que diz “É um sábio aquele que escala o Fuji uma vez, e um idiota aquele que o faz duas vezes”. Se sou um “sábio” hoje, ainda não descarto a possibilidade de um dia virar um “idiota”: posso um dia vir a subir por outra rota, com outra vista, outra experiência. Mas deixo aqui três dicas muito importantes para qualquer um pensando em subir, independente de rota:
- Como o desafio é tanto psicológico quanto físico, somente suba se sentir-se preparado.
- Saiba exatamente o que levar, e o que não levar; e
- Consulte a previsão do tempo e certifique-se de subir em um dia onde não seja esperada chuva (como fizemos).
O resto é secundário. :)
1 A estação do Fuji é uma estação meteorológica instalada no topo da montanha em 1964. A posição privilegiada permitia que o seu radar tivesse um alcance de 800 km, o que foi essencial na previsão e acompanhamento de tufões no Pacífico desde então. Com a introdução dos satélites meteorológicos, a sua importância foi diminuida e a estação foi desativada em 1994. Mesmo assim, pela sua importância o radar do Fuji é considerado um dos grandes marcos históricos da engenharia elétrica pelo IEEE.