terça-feira, abril 30, 2013

Epílogo, parte III

Lembro da quando voltava do Japão para o Brasil pela primeira vez em 2003. Enquanto ia em direção ao aeroporto de Kansai (関西), ao olhar as casas, lojas e ruas no caminho ao aeroporto e tendo estado lá por apenas alguns meses, sentia que ainda tinha muito do país que eu não havia descoberto. O Japão que eu via em 2003 ainda era misterioso e, se na hora eu não notava, retrospectivamente sinto que fiquei com uma sensação de “quero mais”.

Acho que foi em parte por isso que voltei ao Japão em 2006. Quando me mudei pra Tokyo (東京), minha ida era de certa forma sem prazo definido pois tudo dependeria da minha entrada no doutorado e de como ele prosseguiria. Quando primeiro estive em Tokyo em 2003, admito que não gostei. Achei uma cidade cheia e barulhenta. Como dizia o Caetano sobre São Paulo, “chamei de mau gosto o que vi” e foi por aí. Mas depois de quase cinco anos morando lá, já tinha aprendido a gostar de tudo que faz de Tokyo uma das cidades mais legais do mundo. Não sei nem por onde começar. Gosto de Tokyo por não ser só uma cidade, mas diversas cidades diferentes que cresceram até se tornarem uma só, mas sem perder a identidade de cada uma. Gosto de Tokyo por sempre ter um evento interessante de nível mundial para se participar, por sempre ter um lugar novo para conhecer, sempre ter algum visitante para se mostrar a cidade, por ter todo tipo de produto para se consumir. Gosto de Tokyo por ser um lugar onde a vida acontece em outro rítmo e escala, e apesar disso as coisas sempre funcionarem: a cidade é limpa, o transporte é prático e eficiente, os serviços de primeira, a comida é variada e boa, as pessoas de toda parte.

Tendo uma cidade assim sempre a disposição, com o tempo a gente vai parando de dar valor, fazendo sempre as mesmas coisas, criando uma rotina. E no momento em que a gente decide ir embora, repentinamente volta a dar valor e resolve fazer todas as coisas que ainda não fez. Quando resolvi ir embora, comigo não foi diferente.

Uma dessas coisas que sempre quis fazer era dar uma volta caminhando pela linha Yamanote (山手線). A Yamanote é uma linha circular de trem que passa pelas principais vizinhanças de Tokyo. Originalmente era a linha que ligava as diversas “cidades” que atualmente formam Tokyo; hoje em dia é uma linha urbana. Com cerca de 35 km de extensão, é um símbolo da cidade, e seus trenzinhos verdes são usados em brinquedos, souvenirs, despertadores; até um CD com as musiquinhas que tocam na plataforma de todas as estações está a venda. Quando comentei que estava indo embora do Japão, meu amigo Terabe lembrou do nosso antigo trato de um dia fazer essa caminhada, e decidimos que tinha chegado a hora.

Só que uma caminhada de 35 km toma tempo. Por isso, decidimos que deveríamos começar bem cedo pela manhã, para fazermos o passeio com calma durante o dia. Os primeiros trens de Tokyo circulam pelas 4 horas, então se saíssemos de casa para nos encontrarmos na estação da Yamanote mais próxima, teríamos que acordar cedo demais. Aí tivemos a brilhante idéia de combinar esse passeio com outra coisa que há tempos gostaríamos de experimentar, e que pra mim essa seria a última chance: passar uma noite nos famosos “hotéis cápsula”.

Pra quem não conhece, os hotéis cápsula são pequenas “caixas” do tamanho de uma cama, onde se pode pernoitar. Acho que a origem vem do boom econômico do Japão nos anos 80, onde o preço do metro quadrado era absurdamente alto (diz-se que e o valor da área tomada pelo Palácio Imperial era mais alto que de toda a área da California). Hoje em dia, economicamente falando, nem são grande negócio, já que se encontram hotéis econômicos às vezes por preço até mais em conta. Mas nossa escolha pelo hotel cápsula foi pela experiência, e escolhendo um próximo a uma estação da Yamanote, começaríamos nossa caminhada ainda cedo.


A estadia foi interessante. Ao se chegar, você deixa suas coisas num armário e leva apenas sua roupa para dormir, escova de dente, etc, para o “quarto”, que na verdade é um andar com várias cápsulas e um banheiro compartilhado. A cápsula em si não é tão apertada e tem uma pequena porta que não fecha completamente, então não chega a causar tanta claustrofobia. O problema é que se tiverem muitas pessoas no seu andar, pode ser um pouco barulhento com os roncos reverberando nas outras cápsulas. :) Em geral esses hoteis são apenas para homens—o público alvo são os “salarymen” (サラリーマン), funcionários japoneses, que perderam o último trem e não tem como voltar pra casa—, mas ouvi que alguns tem andares só para mulheres.

A noite foi razoavelmente confortável. No dia seguinte acordamos cedo e começamos a caminhada às 5 horas. Fizemos duas longas paradas, uma para o café da manhã e outra para o almoço. Durante o almoço sentimos outro terremoto longo e forte, nos lembrando que apesar do ótimo dia, as coisas ainda não estavam “normais”. Caminhamos tranquilamente, tiramos muitas fotos. Foi ótimo realmente “sentir” Tokyo e todas as suas vizinhanças. A caminhada total levou cerca de 13 horas e terminamos com o sensação de missão cumprida, Tokyo desvendada. O álbum completo de fotos pode ser visto aqui.


Além de Tokyo, havia outras cidades importantes do Japão que eu ainda não tinha visitado. Conhecer todas seria impossível, mas duas em especial eu gostaria de visitar: Kobe (神戸) e Himeji (姫路). Nos últimos dias organizei uma rápida viagem para as duas, e também para melhor explorar Osaka (大阪), por onde já tinha passado algumas vezes, mas nunca explorado mais a fundo.

Kobe é um dos principais portos do Japão, famosa por ser o ponto de saída dos imigrantes japoneses que vieram para o Brasil, e mais recentemente em 1995, pelo grande terremoto de Awaji. Lá visitei o porto, o museu de “redução de desastres” sobre o terremoto, o museu marítimo e caminhei bastante pela cidade. Em Himeji, cidade menor, a principal atração é o seu castelo. O lugar foi usado como cenário no filme Com 007 só se Vive Duas Vezes (You Only Live Twice). O que eu não sabia é que o castelo estava em restauração. Mesmo assim, valeu a visita, pois ele estava aberto e era possível pegar um elevador até em cima do telhado, coisa que geralmente não é possível. As cerejeiras da praça em frente ao castelo estavam todas floridas, e as pessoas aproveitando para fazer hanami (花見) num clima muito agradável. Em Osaka visitei as principais atrações como o famoso Aquário e o prédio Sky Umeda, além de uma visita interessante ao museu Momofuku Ando em homenagem ao criador do macarrão instantâneo, visita obrigatória para qualquer fã de Miojo.





De volta a Tokyo, chegava o momento das despedidas. Tentei reencontrar todos que fizeram parte da minha vida por lá: colegas de laboratório, meu professor e, claro, amigos. Delvolver o apartamento foi mais simples que esperava. Algumas coisas maiores enviei de volta ao Brasil pelas empresas de mudança que geralmente atendem aos dekasegis em regresso, e o serviço foi bastante eficiente: de porta a porta resolvendo todas as questões de alfândega. Consegui também doar a maior parte das coisas de casa para outros estudantes e os poucos itens que não achei interessado tive que jogar fora, comprando os selos necessários para lixos de “grande” volume. Aos poucos, meu apartamento em Tokyo, onde morei por 3 anos, foi ficando vazio. Sensação esquisita. Marquei o dia e hora para as visitas das empresas de água e energia (a TEPCO, mesma operadora da usina de Fukushima) e no horário combinado as duas apareceram, conferiram o contador, e pude pagar na hora o valor devido ao funcionário. Eficiência japonesa, como de costume. Agora sem água e energia, apenas com minha mala de volta, me mudei nas últimas noites para casas de amigos. Ser “turista” na sua própria cidade e uma sensação muito estranha.

E no dia 21 de Abril de 2011 o capítulo japones terminou. No trem para o aeroporto lembrava da mesma situação anos antes. Dessa vez o sentimento era diferente. Eu olhava as vizinhanças cortadas pela linha do trem e pensava que se eu não havia estado ali, com certeza tinha estado em muitos outros lugares parecidos. Se não sabia o que tinha dentro de cada uma daquelas casas, tinha uma certa idéia de que ela era semelhante a tantas outras casas de japoneses que conheci. Sabia que se caminhasse por aquelas ruas conseguiria certamente entrar numa loja e sair com o que eu queria, encontrar meu caminho, enfim, o mistério (mas não o encanto) tinha acabado, o Japão havia sido desvendado. Mesmo eu não falando fluentemente o idioma, eu conhecia as pessoas, sabia como elas pensavam e agiam, tinha visto suas casas, escolas, empresas, ruas, parques, enfim, o país não era mais estranho.


Acho que saí do Japão em um bom momento. O Japão é um país fantástico, mas o que mais surpreende o visitante é como as coisas podem ser diferentes, como a cada momento você pode ser surpreendido por algo completamente inesperado, ou pelos pequenos detalhes que são tão importantes por lá, sejam nas coisas ou nas pessoas. Aprendi muitas coisas por lá, entre elas:
  • A capacidade do povo japonês de sempre se colocar no lugar do outro, e guiar todas suas ações em função disso.
  • O senso de grupo. Somos todos parte de diversos grupos e temos responsabilidade junto a eles.
  • Assumir por padrão que os outros agem de boa fé, e corresponder a esta expectativa agindo da mesma forma. Quando dois japoneses se encontram pela primeira vez, não é “prazer em conhecê-lo” o que dizem, mas sim “よろしくお願いします” (yoroshiku onegaishimasu), que pode ser traduzida como algo próximo de “por favor, sejamos bons/corretos/gentis um com o outro”.
  • A valorização do esforço, acima da aptidão.
  • A constante busca pela melhoria no que se faz, em todos os aspectos da vida.
  • A busca pela harmonia e a prevenção de conflitos.
O Japão virou parte de mim e, se não penso mais em morar lá, sei que ainda visitarei muitas vezes o país. Ao encontrar um amigo japonês no Brasil um ano após a minha volta, após ele ter pela primeira vez passado pela relativamente longa viagem do Japão para o Brasil (cerca de 35 horas) ele me disse algo muito interessante que ficou na minha cabeça:
“A gente tem sorte que o mundo é de um tamanho bom. Ele não é nem tão pequeno que não tenha espaço para todo mundo, nem tão grande que seja muito difícil de ir para qualquer lugar. Mesmo do Japão para o Brasil, extremos opostos, não leva nem dois dias. É cansativo mas dá pra aguentar.”
E realmente: o mundo é de um tamanho ideal. Tem muita coisa pra se ver, mas está tudo ao nosso alcance.

さよなら日本!